É um facto que a terra é
propriedade do Estado e não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma
alienada, hipotecada ou penhorada. Como meio universal de criação de riqueza e
do bem-estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano,
cabendo ao Estado determinar as condições de uso e de aproveitamento da terra
podendo esse direito ser atribuído tanto às pessoas singulares como às pessoas
colectivas tendo em conta o seu fim social ou económico.
Tendo em conta os aspectos acima
referidos, o legislador moçambicano aprovou a lei de terras - Lei N°19/97, de 1 de Outubro,
tendo esta lei, na parte respeitante ao regime de uso e aproveitamento da terra
nas áreas de cidades e vilas, sido regulamentado pelo Conselho de Ministros o
qual, no uso das suas competências, aprovou o decreto N°60/2006, de 26
de Dezembro, vulgarmente conhecido como regulamento
de solo urbano.
Dado ao incremento, nos últimos
tempos, dos litígios que opõem os titulares do direito de uso e aproveitamento
da terra e os Órgãos Locais do Estado e Autárquicos, julgo ser extremamente importante
e pertinente fazer-se uma reflexão sobre esta matéria.
O Regulamento do solo urbano
dentre as várias matérias regula aspectos como as modalidades de acesso ao
direito de Uso e Aproveitamento do solo urbano, os direitos e as obrigações dos
titulares do direito de uso e aproveitamento deste solo e as modalidades de
extinção e limitação deste direito.
Nos termos da legislação de
terras em vigor em Moçambique, o direito de uso e aproveitamento de terra tem,
numa fase inicial, um carácter provisório e só depois de se comprovar o
cumprimento do plano de exploração da terra é que este direito assume o carácter
definitivo.
Nos termos do disposto no
Regulamento do solo urbano, no seu artigo 36, o direito de uso e aproveitamento
de terra extingue-se se o seu titular não iniciar, no prazo para o efeito
fixado, as obras indispensáveis à utilização do terreno para o fim a que se
destina.
Na minha opinião esta disposição
do regulamento de solo urbano é bastante compreensível visto a terra pertencer
ao Estado e dever-se assegurar o acesso a terra aos que têm real interesse em
fazer o devido aproveitamento da mesma obviando-se assim aquelas situações em
que determinadas parcelas de terra permanecem ociosas, sem qualquer
aproveitamento, por longos períodos o que não se compadece com a larga procura
deste bem precioso e com o princípio subjacente e que fundamenta a atribuição
ao Estado da propriedade sobre a terra.
No entanto, o número 2 do
referido artigo 36 do Regulamento da lei de terras estabelece que a extinção do direito de uso e aproveitamento
do solo urbano não carece de qualquer formalismo e opera-se de forma automática
logo que expirado o prazo.
Salvo melhor opinião, esta
disposição é problemática e pode dar azo ao uso abusivo da mesma e gerar
situações de injustiça e lesão grave aos direitos e interesses dos titulares do
direito de uso e aproveitamento de terra, particularmente nas situações em que a
autoridade administrativa já haja emitido a licença de construção necessária ao
início das obras.
Nos casos em que a autoridade
administrativa já tenha emitido uma licença de construção, salvo melhor
opinião, a extinção do direito de uso e aproveitamento não pode ocorrer de
forma automática sem qualquer formalismo visto o seu titular já ter o documento
que o autoriza a iniciar a obra e portanto, requer que a entidade competente faça
uma verificação, de preferência in loco, do
início ou não da obra e verifique se existem ou não motivos que justifiquem o
não aproveitamento da terra no prazo estipulado e só depois disso é que se pode
avançar para uma extinção deste direito. Outro não pode ser o procedimento,
salvo melhor opinião, sob pena de se pôr em causa os direitos e interesses dos
titulares deste direito e causar danos de natureza patrimonial aos mesmos.
Ora, como pode, o Conselho de
Ministros, determinar que a extinção do direito de uso e aproveitamento da
terra não carece de qualquer formalismo e opera-se de forma automática logo que
expirado o prazo, se a Constituição da Republica de Moçambique no seu número 2
do artigo 253, diz taxativamente que os actos administrativos são notificados
aos interessados e são fundamentados quando afectam direitos ou interesses dos
cidadãos legalmente tutelados? Mais ainda, ao consultar-se a Lei N°19/97, de 1 de Outubro,
Lei de Terras, no seu artigo 27 referente a revogação da autorização provisória,
diz taxativamente que no término da autorização provisória, constatando-se o não
cumprimento do plano de exploração, sem motivos justificados, pode a mesma ser
revogada, sem direito a indemnização pelos investimentos não removíveis entretanto
realizados.
Portanto, como pode, um decreto
do Conselho de Ministros que na hierarquia das leis está muito abaixo da Lei de
Terras e da Constituição da Republica, determinar que a extinção do direito de
uso e aproveitamento da terra não carece de qualquer formalismo e opera-se de
forma automática logo que expirado o prazo se tanto a Constituição da República
como a Lei de Terras preconizam exactamente o contrário? O que pretendeu o
legislador no número 2 do artigo 253 da Constituição da Republica quando diz
que os actos administrativos são notificados aos interessados e são
fundamentados quando afectam direitos ou interesses dos cidadãos legalmente
tutelados? Quando a Lei de Terras diz que a revogação deve ter lugar quando no término
da autorização provisória, constata-se o não cumprimento do plano de exploração
sem motivos justificados não está já implícito que deve haver alguma fundamentação?
O que se pode entender por ausência de motivos justificados pelo não cumprimento
do plano de exploração? Como se pode aferir se existem ou não motivos
justificados se não se dá ao titular do direito de uso e aproveitamento da
terra a possibilidade de ser notificado para exercer o direito de apresentar
motivos justificados que obstem ou não a revogação do seu direito de uso e
aproveitamento da terra? Será que o numero 2 do artigo 36 do decreto N°60/2006, de 26
de Dezembro, vulgarmente conhecido como regulamento de solo urbano satisfaz
integralmente ao estipulado no número 2 do artigo 253 que diz taxativamente que
os actos administrativos são notificados aos interessados e são fundamentados
quando afectam direitos ou interesses dos cidadãos legalmente tutelados? Será
que não estaremos perante um acto inconstitucional e também contrário a Lei de
Terras?
Penso que ao promover esta reflexão,
cumpri com o meu dever de cidadania, pelo que julgo pertinente que a sociedade
se envolva nesta reflexão e que os juristas da praça sejam chamados a emitir os
seus pareceres técnicos acerca desta matéria e que as entidades legalmente
autorizadas a solicitar a verificação da constitucionalidade deste regulamento recorram
ao Conselho Constitucional de forma a se clarificar esta questão e de alguma
forma a minorar os conflitos que se verificam actualmente.
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