A Constituição da República de Moçambique (CRM)
consagra a laicidade do nosso Estado e estabelece que o objetivo da laicidade é
o de promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade
nacional (art. 12).
Os recentes despachos dos Ministro e Vice-Ministro da
Educação põem em causa esta estabilidade, tolerância e reforço da unidade
nacional e, mais grave ainda, contrariam os direitos, liberdades e garantias
consagrados pela CRM.
A par da laicidade do Estado, a CRM consagra a
liberdade religiosa (art. 54) onde se estabelece que os cidadãos são livres de
praticar ou não uma religião e, caso a pratiquem, não podem ser objeto de
discriminação por conta da religião praticada.
A laicidade do Estado é uma consequência da liberdade
religiosa. O Estado laico não professa qualquer religião e não exerce qualquer
poder religioso e, portanto reconhece, respeita e valoriza as opções religiosas
dos cidadãos.
A laicidade, nos termos da CRM, é dirigida unicamente ao
Estado e não é extensível aos cidadãos. Ela impõe que o Estado não professe qualquer
religião e dá ao cidadão a liberdade de professar ou não a religião que
entenderem. Assim, a laicidade é o reverso da moeda da liberdade religiosa,
neste sentido, a CRM atribui ao Estado o dever de não exercer qualquer poder
religioso e respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos.
A laicidade imposta apenas ao Estado é perfeitamente
justificável no facto de ser o Estado o representante de todos os cidadãos e
como representante de todos ele não pode abraçar ou defender apenas uma ou
outra religião pois estaria a alienar o seu poder representativo geral e a pôr
em causa a sua legitimidade perante todos os cidadãos.
A liberdade religiosa consagrada na CRM implica o
respeito pelos mandamentos e regras das religiões praticadas em Moçambique, desde
que as mesmas não contrariem a Constituição e as leis em vigor.
Como afirma Jorge Miranda in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, 1993,
pag. 359, “ a liberdade religiosa não
consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém
impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, (...) em o Estado
permitir ou propiciar a quem segue determinada religião o cumprimento dos deveres
que dela decorrem (...) ”. “ Se o
Estado, apesar de conceder aos cidadãos, o direito de terem uma religião, os
puser em condições que os impeçam de a praticar, aí não haverá liberdade
religiosa”.
A religião muçulmana, prevê determinados deveres aos
seus praticantes, onde se incluem os deveres relativos à indumentária das
mulheres. De acordo com as fontes da religião muçulmana, as mulheres devem
vestir-se de forma recatada cobrindo os cabelos, os tornozelos e os cotovelos.
Esta indumentária é obrigatória a todas as mulheres muçulmanas em todas as
épocas do ano e não apenas no sagrado mês do Ramadan.
A indumentária acima referida não contraria, qualquer dispositivo
da CRM ou das leis em vigor; sendo assim, ela deve ser respeitada por todos.
Neste sentido, a CRM estabelece (art. 56) que os
direitos e liberdades individuais são directamente aplicados, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado. Portanto,
vincula e deve ser garantida pelo Estado e por todas entidades que actuam em nome
do Estado, nomeadamente o Ministério da Educação.
Os despachos ora em discussão, um no sentido de
proibir o uso de véu islâmico nas escolas públicas e outro no sentido de permitir
o uso do véu islâmico apenas no sagrado mês do Ramadan, põem em causa a
liberdade religiosa.
Ao agir assim, o Estado Moçambicano saiu do seu papel
passivo, decorrente da sua laicidade e passou a interferir na vida religiosa, impondo
determinadas condições e limitando o exercício da liberdade religiosa, o que é inconstitucional
e ilegal e, em última instância, põe em causa o objectivo de promover um clima
de entendimento, tolerância, paz e reforço da unidade nacional consagrados no
art. 12 da CRM.
Na minha opinião, os acima referidos despachos foram
inoportunos, por terem sido proferidos no sagrado mês de Ramadan onde os
muçulmanos procuram aprimorar a sua espiritualidade e a sua ligação com Deus e
por ser questionável o objetivo que com os mesmos se pretendeu alcançar.
Não percebo o que o Ministro e Vice-Ministro da Educação
pretenderam com os despachos ora em discussão. Ficou claro que tais despachos
até agora, apenas geraram um clima de discórdia e intolerância em tudo
contrário aos objetivos consagrados no acima referido artigo 12 da CRM.
Será que o que os autores dos despachos aqui em causa
pretenderam foi uniformizar o vestuário nas Escolas Públicas?
Mesmo que admitamos que tenha sido este o objetivo, ainda
assim, questiona-se se a uniformização já não foi atingida com a imposição de uniformes
escolares, bem como questiona-se o seguinte: Se, de facto, o que se pretendeu foi
a uniformização dos estudantes, então o porquê de tais despachos não se
estenderem aos penteados admitidos nas escolas?
Hoje verifica-se o uso de penteados de diversas
formas, cores e tamanhos, com recurso a cabelos artificiais, mechas, tissagens,
rastas, extensões, etc.... Os alunos das escolas públicas não estão imunes a
estas tendências da moda mas, é inegável que as mesmas estabelecem uma
diferenciação manifesta entre as pessoas. No entanto encara-se tais tendências
como estando dentro da alçada e liberdade individual de cada um e que portanto
não podem ser objeto de interferência do Estado.
Então o porquê de se tratar de forma diferenciada a
questão do véu islâmico?
Voltando à CRM (art. 35), esta estabelece o princípio
da igualdade. Tal princípio não se traduz numa mera igualdade formal – tratar de igual modo a todos os cidadãos, e sim
de uma verdadeira igualdade material
– tratar de igual modo situações iguais e de modo diferenciadas situações
diferentes.
Assim, ao incidir, os despachos acima referidos, apenas
sobre o véu islâmico e não sobre as restantes causas da diferenciação entre os
estudantes, está-se a violar o princípio da igualdade acima referida.
Portanto, por diversas perspectivas que se analise os
despachos ora em discussão, à mesma conclusão se chega – os despachos são inconstitucionais, atentam contra a liberdade
religiosa, contra o princípio da igualdade e contra o princípio da laicidade do
Estado.
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