terça-feira, 28 de agosto de 2012

SEGURANÇA – OBJECTIVO DO ESTADO E DIREITO DO CIDADÃO.


No âmbito do contrato social normalmente celebrado entre os cidadãos e o Estado, as pessoas abrem mão de certos direitos para o governo ou outra autoridade com o fim de obter as vantagens da ordem social. Nesse contexto, o contrato social é um acordo entre os membros de toda a sociedade, pelo qual reconhecem a autoridade, igualmente sobre todos, de um conjunto de regras, de um regime político ou de um governante e é neste contexto que a justiça com as próprias mãos passou a ser proibida. Assim, conforme Rousseau, "cada um de nós coloca sua pessoa e sua potência sob a direcção suprema da vontade geral”.

Ao Estado, no exercício do poder político, cabe realizar certos fins, nomeadamente: a segurança, a justiça e o bem-estar social.

Quanto a segurança, esta aparenta ter sido a primeira necessidade que conduziu a instituição do poder político, pois o interesse do Homem é viver, e para viver precisa de se proteger contra os perigos da natureza, contra a cobiça dos seus semelhantes e contra a violência dos mais fortes.

Assim, o poder político deve instituir uma força colectiva organizada que é posta ao serviço de interesses gerais e de princípios socialmente aceites.

Quando o Estado deixa de prosseguir, os indivíduos sentem-se tentados a prover a sua própria defesa e acabam por fazer a justiça por suas próprias mãos e a sociedade política fica minada nos seus fundamentos e a anarquia instala-se.

O recrudescer da criminalidade e o surgimento de novos tipos de crimes, muitos dos quais utilizando técnicas altamente sofisticadas, exigem do Estado a redefinição célere de toda a sua estratégia de combate ao crime, adopção de tecnologias apropriadas, capacitação adequada das suas forças policiais, políticas remuneratórias e de segurança social adequada a estas forças e uma maior vigilância quanto a possíveis infiltrações, no seu seio, de agentes activos e passivos ligados ao crime organizado mas, acima de tudo, requer uma acção rápida e concertada no sentido de não passar para a sociedade o sentimento de apatia, falta de vontade ou até mesmo de aparente cumplicidade com o crime.

Em Moçambique, todos os cidadãos têm direito constitucional à segurança e a sua Polícia, em colaboração com outras instituições do Estado, tem a função de garantir a lei e a ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. No exercício das suas funções, a Polícia, obedece a lei e serve, com isenção e imparcialidade os cidadãos e as instituições públicas e privadas.

Nos últimos tempos vem se notando uma relativa apatia das autoridades policiais no combate e esclarecimento de vários crimes que causam dor e luto e elevados danos humanos e materiais, como é o caso de assassinatos, mutilações, raptos, tráfico de pessoas, roubos a residências, violações de crianças e mulheres, tráfico de órgãos humanos para fins de rituais satânicos, assaltos aos bancos, roubo de celulares, etc.

Estes crimes ocorrem em outros países alguns dos quais com maiores recursos financeiros e materiais do que o nosso, mas, nem por isso deve deixar de nos preocupar e de nos indignar. Hoje alguns destes crimes – os raptos, têm estado, até o momento, a visar cidadãos moçambicanos com determinadas características étnicas e religiosas mas, a ausência de um combate célere e efectivo poderá certamente fazer com que este tipo de crimes se enraízem e se propaguem por toda a sociedade e portanto, urge combater-se este flagelo o mais cedo possível, para evitar danos maiores e mais gerais. A competência primeira e última nesta batalha pertence a Polícia, portanto, a mesma não pode e nem deve demitir-se das suas responsabilidades sob a alegação de que trata-se de um assunto relativo a uma determinada parcela da sociedade e que portanto deve ser resolvida por esta parcela da sociedade e de que não dispõe de meios para o efeito. À polícia, como entidade a quem cabe assegurar a segurança dos membros da sociedade, cabe a função de garantir a segurança de todos sem distinção, e nesta função deve ser orientada pelo princípio de que ninguém, independentemente de quem seja, está acima da lei e, portanto, mesmo que os indícios indiquem que alguns dos autores destes crimes pertencem a parcela da sociedade que está a ser atingida pelos crimes, ainda assim o Estado não pode, de maneira alguma, demitir-se da sua função de garantir que estes autores sejam identificados, detidos, julgados e devidamente punidos com base na lei em vigor. O que não podemos é tolerar que se diga que não há meios e que o problema somente afecta um pequeno grupo de cidadãos partindo do pressuposto de que é um problema exógeno à nossa sociedade, pois o que hoje afecta a uma pequena parcela da sociedade amanhã poderá alastrar-se por toda a sociedade e por todo o país. O que não podemos aceitar e nem tolerar é que se diga que não se dispõe de meios quer seja materiais como financeiros quando sabemos haver vontade já manifestada por membros da sociedade e por países solidários de colocar a disposição da polícia alguns dos meios de que esta necessite para agir adequadamente e celeremente. Salvo melhor entendimento, a impunidade ou o sentimento de que a entidade responsável por garantir a segurança não irá agir adequadamente no sentido de punir os crimes praticados poderá conduzir toda a sociedade à anarquia e à descrença total das nossas instituições do Estado, o que, não deve sossegar a ninguém e muito menos ao Estado. O desespero que a impunidade pode causar nas vítimas do crime pode conduzir a experiências em que os cidadãos assumam para si a função de garantir a sua segurança pelos meios de que dispõe e portanto fazer a justiça por suas próprias mãos; o que deve-se evitar a todo o custo, cabendo a cada um de nós dar o seu contributo para que a sociedade não seja conduzida a este extremo. Então, que haja vontade e seriedade na forma como se aborda a criminalidade em geral e se esclareça com a brevidade e celeridade exigida os casos criminais e em particular aqueles que embora tipificados como sendo novos no nosso seio, são certamente os que maior instabilidade e descrédito poderão trazer para a boa imagem até aqui conquistada, com muito custo, por todos. Enquanto cidadãos cumprimos a parte que nos cabe do contrato social celebrado com o Estado, pelo que cabe ao Estado também cumprir a parte que lhe cabe. Só assim poderemos validar e renovar ciclicamente o nosso contrato social.

A segurança é um direito de todos tal como todos são iguais perante a lei e devem perante a Lei responder pelos actos praticados. Que se punam os criminosos independentemente das suas origens étnicas, raciais ou das suas convicções religiosas. É isso que esperamos do Estado.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

OS DESPACHOS DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO – PIOR A EMENDA DO QUE O SONETO



A Constituição da República de Moçambique (CRM) consagra a laicidade do nosso Estado e estabelece que o objetivo da laicidade é o de promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade nacional (art. 12).

Os recentes despachos dos Ministro e Vice-Ministro da Educação põem em causa esta estabilidade, tolerância e reforço da unidade nacional e, mais grave ainda, contrariam os direitos, liberdades e garantias consagrados pela CRM.

A par da laicidade do Estado, a CRM consagra a liberdade religiosa (art. 54) onde se estabelece que os cidadãos são livres de praticar ou não uma religião e, caso a pratiquem, não podem ser objeto de discriminação por conta da religião praticada.

A laicidade do Estado é uma consequência da liberdade religiosa. O Estado laico não professa qualquer religião e não exerce qualquer poder religioso e, portanto reconhece, respeita e valoriza as opções religiosas dos cidadãos.

A laicidade, nos termos da CRM, é dirigida unicamente ao Estado e não é extensível aos cidadãos. Ela impõe que o Estado não professe qualquer religião e dá ao cidadão a liberdade de professar ou não a religião que entenderem. Assim, a laicidade é o reverso da moeda da liberdade religiosa, neste sentido, a CRM atribui ao Estado o dever de não exercer qualquer poder religioso e respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos.

A laicidade imposta apenas ao Estado é perfeitamente justificável no facto de ser o Estado o representante de todos os cidadãos e como representante de todos ele não pode abraçar ou defender apenas uma ou outra religião pois estaria a alienar o seu poder representativo geral e a pôr em causa a sua legitimidade perante todos os cidadãos.

A liberdade religiosa consagrada na CRM implica o respeito pelos mandamentos e regras das religiões praticadas em Moçambique, desde que as mesmas não contrariem a Constituição e as leis em vigor.

Como afirma Jorge Miranda in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, 1993, pag. 359,a liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, (...) em o Estado permitir ou propiciar a quem segue determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (...) ”. “ Se o Estado, apesar de conceder aos cidadãos, o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar, aí não haverá liberdade religiosa”.

A religião muçulmana, prevê determinados deveres aos seus praticantes, onde se incluem os deveres relativos à indumentária das mulheres. De acordo com as fontes da religião muçulmana, as mulheres devem vestir-se de forma recatada cobrindo os cabelos, os tornozelos e os cotovelos. Esta indumentária é obrigatória a todas as mulheres muçulmanas em todas as épocas do ano e não apenas no sagrado mês do Ramadan.

A indumentária acima referida não contraria, qualquer dispositivo da CRM ou das leis em vigor; sendo assim, ela deve ser respeitada por todos.

Neste sentido, a CRM estabelece (art. 56) que os direitos e liberdades individuais são directamente aplicados, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado. Portanto, vincula e deve ser garantida pelo Estado e por todas entidades que actuam em nome do Estado, nomeadamente o Ministério da Educação.

Os despachos ora em discussão, um no sentido de proibir o uso de véu islâmico nas escolas públicas e outro no sentido de permitir o uso do véu islâmico apenas no sagrado mês do Ramadan, põem em causa a liberdade religiosa.

Ao agir assim, o Estado Moçambicano saiu do seu papel passivo, decorrente da sua laicidade e passou a interferir na vida religiosa, impondo determinadas condições e limitando o exercício da liberdade religiosa, o que é inconstitucional e ilegal e, em última instância, põe em causa o objectivo de promover um clima de entendimento, tolerância, paz e reforço da unidade nacional consagrados no art. 12 da CRM.

Na minha opinião, os acima referidos despachos foram inoportunos, por terem sido proferidos no sagrado mês de Ramadan onde os muçulmanos procuram aprimorar a sua espiritualidade e a sua ligação com Deus e por ser questionável o objetivo que com os mesmos se pretendeu alcançar.

Não percebo o que o Ministro e Vice-Ministro da Educação pretenderam com os despachos ora em discussão. Ficou claro que tais despachos até agora, apenas geraram um clima de discórdia e intolerância em tudo contrário aos objetivos consagrados no acima referido artigo 12 da CRM.

Será que o que os autores dos despachos aqui em causa pretenderam foi uniformizar o vestuário nas Escolas Públicas?

Mesmo que admitamos que tenha sido este o objetivo, ainda assim, questiona-se se a uniformização já não foi atingida com a imposição de uniformes escolares, bem como questiona-se o seguinte: Se, de facto, o que se pretendeu foi a uniformização dos estudantes, então o porquê de tais despachos não se estenderem aos penteados admitidos nas escolas?

Hoje verifica-se o uso de penteados de diversas formas, cores e tamanhos, com recurso a cabelos artificiais, mechas, tissagens, rastas, extensões, etc.... Os alunos das escolas públicas não estão imunes a estas tendências da moda mas, é inegável que as mesmas estabelecem uma diferenciação manifesta entre as pessoas. No entanto encara-se tais tendências como estando dentro da alçada e liberdade individual de cada um e que portanto não podem ser objeto de interferência do Estado.

Então o porquê de se tratar de forma diferenciada a questão do véu islâmico?

Voltando à CRM (art. 35), esta estabelece o princípio da igualdade. Tal princípio não se traduz numa mera igualdade formal – tratar de igual modo a todos os cidadãos, e sim de uma verdadeira igualdade material – tratar de igual modo situações iguais e de modo diferenciadas situações diferentes.

Assim, ao incidir, os despachos acima referidos, apenas sobre o véu islâmico e não sobre as restantes causas da diferenciação entre os estudantes, está-se a violar o princípio da igualdade acima referida.

Portanto, por diversas perspectivas que se analise os despachos ora em discussão, à mesma conclusão se chega – os despachos são inconstitucionais, atentam contra a liberdade religiosa, contra o princípio da igualdade e contra o princípio da laicidade do Estado.